viernes, 7 de junio de 2013

ONDJAKI ONDJAKI. Poesía Actual de Angola en Brasil





Ondjaki nació en Luanda Angola, 1977. Prosista y poeta, también escribe para cine y codirigió un documental sobre la ciudad de Luanda ("Ojalá crezcan Pitangas - historias de Luanda", 2006). Es miembro de la União dos Escritores Angolanos. Algunos de sus libros han sido traducidos al francés, español, italiano, alemán, inglés y chino.



materiais para confecção de um espanador de tristezas



tinha aprendido que era muito importante criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar o cinzento. não munido de nenhum artefacto alegre, inventei um espanador de tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.

ondjaki



o início

segui a lesma. a baba dela parecia um rio de infância perdido no tempo. escorreguei no tempo.
nesse rio havia um jacaré. a fileira enorme de dentes lembrou-me uma pequena aldeia cheia de cubatas [talvez a aldeia de ynari];
adormeci na aldeia.
ouvi um barulho – era a lesma a sorrir.
o sorriso fez-me lembrar um velho muito velho que escrevia poemas. os poemas eram restos de lixo que ele coleccionava no quarto ou no coração das mãos.
abracei o velho. quase que eu esborrachava a lesma.




a garça e as tardes

encontrei uma garça gaga.
atropelava-se a si própria enquanto voava
com isso considerava-se aleijada.
pedi-lhe emprestada a gaguez.

hoje a garça é feliz.

eu ganhei o hábito
de gaguejar tardes.





apalpar manhãs

sonhei que estava enamorado pela palavra antigamente.
eu sorria muito nesse sonho – fossem gargalhadas. aproveitei a ponta desse sorriso e fiz um escorrega. deslizei. tombei no início de uma manhã.
pensei ver duas borboletas mas [riso] eram duas ramelas. peguei nas duas: o peso delas dizia que eu estava acordado. [a partir do tom amarelado das ramelas é possível apalpar manhãs].
então vi: nos dedos, na pele do corpo por acordar, estavam manchas muito enormes: eram manchas de infância
gosto muito desse tipo de varicela.





na casa do macedo

na casa do camarada macedo
as estrelas já não pedem licença
(ganharam à-vontade de entrar);
os gambuzinos expulsaram os sapos da noite,
tomaram uma minúscula colina.
de repente o céu entornou uma estrela
sobre a casa.
a poeira cósmica faz sombra
na casa dele.
hoje mesmo, agorinha, os gambuzinos recuaram
e se recolheram – perto da represa.
fizeram as pazes com os sapos.
um dia, atrás do tempo,
o camarada macedo chegou nesta colina
e cumprimentou um lagarto (dono de uma nocheira);
esse lagarto é que autorizou o camarada macedo
a habitar o local.
nesta casa circulam abelhas mansas,
quissondes inofensivas.
até estrelas.
o camarada macedo ainda agora me disse:
«esse lagarto faz parte da família.»
[o camarada macedo também deve fazer parte da família
do lagarto.]

louvada seja a huíla.





intimidar o poema a ser raiz

era um poema lateral aos sentidos.
ganhava formato ébrio
ao nem ser escrito.
longe dos pensamentos
imitava uma pedra
[aí as palavras drummondeavam].
longe das lógicas
– com tendência vagabunda –
o poema driblava lados avessos
de noites
e animais
[aqui as sílabas manoelizam, barrentas].
mas uma estrela nunca brilha
tão solitária;
encarece-se também de luuandinar,
miar à couto,
esvair-se para guimarães...
era um poema carente de afectar-se
a ramos gracilianos.
assim alcançava
o estatuto
de raiz.
cheirado, emitia brilhos tímidos
– fosse um pirilampo.





pequeno espanador de tristezas [a derradeira confissão?]

há qualquer coisa de lágrima numa celebração minha.
se soubesse aceitar a beleza das lágrimas não tinha que [me] explicar a origem delas e podia sorrir com as bochechas molhadas mais vezes sem as rugas.
às vezes uma celebração minha é uma timidez – um dia tenho que conseguir abandonar isso e elevar-me a lesma, gambozino, helibélula. acreditar no fio que o grilo ata às estrelas lá longe no universo vincado de negrume; emprestar a minha pele numa jangada quase a afundar; afastar nuvens que dançam nas peles do mar; soprar uma madrugada pra ela voltar a mim [ainda gostava de ter uma crise de asma por excesso de nuvens nos pulmões respiratórios].
sem ser só nas palavras vividas em poesia, pra mim a morte devia ser um voo dançado por um papagaio-pipa – eu quero ser a aragem desse voar. se morrer um dia vou celebrar a palavra morte com incensos e música cantada por andorinhas – a morte anda por aí à solta e a vida afinal parece é uma máscara...
«a palavra vida é maior que a palavra morte», disse-me o meu sobrinho tchiene hoje que ainda faltam dezasseis dias pra ele nascer.
quando ele chegar ao mundo vou mostrar-lhe uma garça gaga que encontrei num poema e me passou a gaguez dela. eu passei a gaguez toda pra uma tarde e foi bonito ver a tarde esticar-se porque não sabia bem como pronunciar o definitivo pôr-do-sol. a noite ficou extenuada – à espera de chegar.
há qualquer coisa de adélia na palavra fé. talvez porque ela seja uma mulher de palavras pesadas com tanta leveza e saiba cavalgar medos selvagens. há na obra dela manchas leves de infância – essa varicela foi muito manuseada por luuandino [o que viajava com intimidade pelas ruas de antigamente, passando por tetembuatubia, kinaxixi, makulusu, olhos das crianças, pássaros e peixes]. certa noite, no lubango, vi o joão vêncio pendurado numa estrela; ao pé da casa onde sonhei nesse serão havia uma represa que era doadora de ruídos bons – apadrinhados por sapos gordos. espreitei pela janela fechada e quase cometi o erro de olhar um gambozino nos olhos. fechei os olhos e abri a janela, limitei-me a olhar assim as estrelas brilhantes numa ternura interna que eu lembro pouco de frequentar [no lubango a ternura brota em mim sem cerimónias].
às vezes uma chuva molhada é uma coisa boa para escorregar momentos em direcção a mim. quando uma chuva molhada cai sobre o mundo redondo, as coisas da vida e a vida das coisas encontram-se num quintal vasto. foi sob uma chuva molhada em canduras que encontrei as barbas do meu pai num poema e o sorriso da minha mãe noutro. foi nas entrelinhas dum poema ensopado que encontrei, várias vezes, a autorização interna pra falar a palavra amor [vou tentar não apagar isto: eu tenho certo receio da palavra amor, espero só que ela não me tenha receios também; seria triste].
foi com as mãos sujas de restos de amor que estiquei uma madrugada. quando digo a palavra madrugada também sinto um esticão no coração. se agora abuso muito das madrugadas é porque cada uma delas tem restos de amor que eu sempre vou perdendo. qualquer dia acumulo esses restos todos e faço uma construção de amor [talvez chame uma mulher pra se encostar ao outro lado dessa construção]. a palavra amor pode ser um labirinto com mais de catorze lados avessos. depois de esticar uma madrugada encosto a madrugada na minha pele e espero. a pele gosta de ser esculpida de novo muitas vezes na vida.
se puser um «v» na palavra esticar, poderei estivar uma madrugada. aí elevo-me a estivador de madrugadas e posso pensar num caixote com luar, um caixote com geada, caixotes pesados de estrelas, caixotes de nuvens carregadas de pingos, um caixote hermético com lágrimas, uma caixinha de costura com restos concretos de amor.
as palavras são muito bonitas também porque têm significados cicatrizados nelas – falo a palavra kwanza e sou invadido pelas belezas de um rio e o sol todo a bater-lhe nas peles da água escura que ele tem. o rio transporta o barro e os peixes e nunca ninguém se queixou de cócegas. há qualquer coisa de jangada na palavra rio. liberdade seria abraçar um jacaré sem lhe apetecer provar-me. eu queria fazer festinhas na carcaça antiga de um jacaré mas se ele me fizer festinhas magoa-me. vou olhar o jacaré de longe e o rio de perto – provar as minhas mãos nele. a pele do rio tem mais espelho que a minha e que a do jacaré. o céu e o sol gostam de verter reflexos nas peles paradas do rio kwanza e eu gosto de saber isso com os meus olhos atónitos de humidade. ali onde o mar beija o rio a espuma celebra o evento com pássaros que perseguem peixes. assim a poesia seja salobra ou salgada.
seria bonito ver os mangais depositarem raízes num poema meu – era a minha maior alegria fluvial.

há qualquer coisa de sapiência na palavra tristeza. e algumas tristezas não são de espanar – um dia posso descobrir que elas me fazem falta e ter que ir buscá-las na lixeira da catin ton.
vou encher-me de silêncios e imitar as pedras. adormecer entre as pedras pode ser que me contagie delas. depois de conseguir ser pedra vou exercitar o sorriso dessa pedra que eu for. com esse sorriso vou iniciar uma construção...

uma construção pode bem ser o lado avesso de uma certa tristezura.